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A (im)possibilidade de convenções em moeda estrangeira no Brasil

 

Por Claudio Ribeiro*

A velha discussão sobre a dolarização

Há muito tempo se debate a dolarização de economias na América Latina. E esse debate teve seu principal momento no início dos anos 1990, quando, por motivos distintos, alguns países latino-americanos como Equador, Panamá e El Salvador adotaram o dólar americano como sua moeda oficial (SERRANO, 2003). Porém, outros países, como a Argentina, implementaram o modelo de paridade cambial por lastreamento (currency board), ligando sua moeda local ao dólar dos EUA. (SERRANO, 2003)

Recentemente, o tema da dolarização de economias voltou às páginas dos jornais. Isso ocorreu após o candidato presidencial da Argentina, Javier Milei, propor a adoção do dólar como moeda oficial do país (BARRÍA, 2023).

Embora não seja o objeto do presente artigo, que não se propõe a analisar os impactos econômicos da dolarização, há quem diga, como Emílio Ocampo, que a dolarização de economias emergentes pode ser um instrumento para combater problemas como a hiperinflação e outros fatores de instabilidade econômica (GUANDALINI, 2023).

No entanto, o Brasil historicamente privilegia a soberania monetária nacional, apesar de algumas medidas econômicas, como no caso dos arrendamentos mercantis oriundos de captação de recursos estrangeiros, que abarrotaram o Poder Judiciário brasileiro no início dos anos 2000 devido à variação cambial decorrente do câmbio flutuante (MPSC, 2022). Por isso, a legislação brasileira impede as estipulações de pagamento em moeda estrangeira ou vinculadas a elas, como estipulado no Artigo 318 do Código Civil:

“Art. 318. São nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda nacional, excetuados os casos previstos na legislação especial.”

Como o país está inserido em um mercado globalizado, o Artigo 318 não pode ser um modelo engessado nem um entrave para transações internacionais. Portanto, o Artigo 13 da nova Lei de Câmbio (14.286/21), refletindo a antiga disposição do Decreto-Lei 857/69, elenca as exceções que permitem acordos de pagamento em moeda estrangeira. Essas exceções incluem:

Art. 13. A estipulação de pagamento em moeda estrangeira de obrigações exequíveis no território nacional é admitida nas seguintes situações:

I – nos contratos e nos títulos referentes ao comércio exterior de bens e serviços, ao seu financiamento e às suas garantias;

II – nas obrigações cujo credor ou devedor seja não residente, incluídas as decorrentes de operações de crédito ou de arrendamento mercantil, exceto nos contratos de locação de imóveis situados no território nacional;

III – nos contratos de arrendamento mercantil celebrados entre residentes, com base em captação de recursos provenientes do exterior;

IV – na cessão, na transferência, na delegação, na assunção ou na modificação das obrigações referidas nos incisos I, II e III do caput deste artigo, inclusive se as partes envolvidas forem residentes;

V – na compra e venda de moeda estrangeira;

VI – na exportação indireta de que trata a Lei nº 9.529, de 10 de dezembro de 1997;

VII – nos contratos celebrados por exportadores em que a contraparte seja concessionária, permissionária, autorizatária ou arrendatária nos setores de infraestrutura;

VIII – nas situações previstas na regulamentação editada pelo Conselho Monetário Nacional, quando a estipulação em moeda estrangeira puder mitigar o risco cambial ou ampliar a eficiência do negócio;

IX – em outras situações previstas na legislação.

Acontece que não é nada incomum encontrar estipulações de pagamentos em moeda estrangeira, ainda que não estejam enquadradas em uma das exceções legais, em que as partes, por motivos variados, entendem que fixar pagamentos em outra uma moeda estrangeira ou indexar o preço a ela, reflete melhor a realidade da operação econômica [1].

A consequência jurídica é clara: nulidade da estipulação.

Entretanto, a realidade não é tão simples. Se a estipulação for declarada nula, o que acontece em seguida? O devedor fica liberado de suas obrigações? O credor, que cumpriu sua parte no contrato, nada terá direito? O juiz deve determinar a contraprestação de forma livre?

A solução apresentada pelo STJ

Uma vez reconhecida a nulidade da estipulação de pagamento em moeda estrangeira, a exoneração ao pagamento pelo devedor resultaria em uma situação injusta. Isso afetaria diretamente a base objetiva do negócio se outra contraprestação materialmente equivalente não fosse estabelecida. Por outro lado, permitir o arbitramento judicial da prestação sem qualquer critério objetivos resultaria a inúmeras decisões distintas, induzindo à insegurança jurídica.

Por isso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), entendendo a necessidade de apresentar solução, adotou o seguinte entendimento: quando não se tratar de uma das exceções legais, a estipulação de pagamento em moeda estrangeira ou qualquer moeda que a ela esteja indexada, deverá, no momento da quitação, ser convertida em moeda nacional sob a cotação vigente na data da celebração do contrato e atualizada por índice oficial de correção monetária[2]. Isso valida, portanto, o acordo celebrado em moeda estrangeira.

Essa abordagem foi aplicada em diversos casos pelo STJ, como no AgInt no REsp n. 1.907.013/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 29/5/2023, DJe de 1/6/2023; AgInt nos EDcl no REsp n. 2.017.292/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 27/3/2023, DJe de 29/3/2023; AgInt no AREsp n. 1.950.499/DF, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 21/2/2022, DJe de 9/3/2022; AgInt no AREsp n. 1.711.772/MG, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 30/8/2021, DJe de 3/9/2021;REsp n. 1.323.219/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 27/8/2013, DJe de 26/9/2013; REsp n. 804.791/MG, também de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 3/9/2009, DJe de 25/9/2009; REsp n. 647.672/SP, também de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em 14/2/2007, DJ de 20/8/2007, p. 234, dentre outros diversos julgados.

Portanto, de acordo com a jurisprudência do STJ, tem-se relativizado a nulidade da estipulação em moeda estrangeira (sim, nulidade relativizada), desde que as partes efetuem o pagamento em moeda nacional e realizem a conversão seja feita com o valor do câmbio da data da contratação

Vamos exemplificar! A e B, ambas empresas brasileiras, celebraram um contrato, em 17 de janeiro de 2014, para fornecimento de um insumo industrial nacional em território brasileiro. No contrato, ficou estabelecida em favor de B uma prestação mensal de US$ 1000,00 (mil dólares americanos), sem cláusula penal por atraso no pagamento. No entanto, A deixou de cumprir as prestações de julho e agosto de 2018, totalizando em um débito de US$ 2000,00 (dois mil dólares americanos), o que ocasionou a rescisão do contrato. Em janeiro de 2019, devido à incerteza sobre a liquidação das prestações, B moveu uma ação de cobrança contra A, obtendo uma decisão definitiva apenas em 1° de março de 2023.

De acordo com a orientação do STJ, devemos considerar a cotação cambial do dia 17 de janeiro de 2014 e atualizar o valor até março de 2023 usando o índice oficial de correção monetária, como o INPC, que utilizamos no exemplo aqui trazido. O resultado desse cálculo é um valor líquido de R$ 8.109,78 (oito mil cento e nove reais e setenta e oito centavos)[3]. No entanto, se considerássemos a cotação cambial na data efetiva de quitação, conforme acordado pelas partes, o valor do débito seria de R$ 10.400,00 (dez mil e quatrocentos reais)[4]. Ou seja, há uma diferença de aproximadamente 22% (vinte e dois por cento) entre os valores.

Também é importante notar que não consideramos os juros de mora neste exemplo, de acordo com o artigo 406 do Código Civil, uma vez que essa disposição legal se aplicaria em ambos os cenários, mas não afetaria o valor do débito principal.

Conclusão

Como se vê, o Brasil adotou postura legislativa para proteger a soberania monetária e evitar a dolarização da sua economia, restringindo acordos e transações em moedas estrangeiras, inclusive metais preciosos. Essa conclusão é clara a partir do Artigo 318 do Código Civil.

Apesar dos esforços do Superior Tribunal de Justiça em interpretar a legislação de forma a proteger parcialmente os direitos de crédito, a exposição à variação cambial poderá diminuir o valor devido e afetar severamente os interesses do credor. Portanto, quando as partes submetem um contrato à legislação brasileira e não estiverem enquadradas em uma das exceções legais, é crucial considerar a orientação jurisprudencial do STJ sobre as estipulações em moeda estrangeira. Isso ajuda a alinhar expectativas e calcular os riscos do negócio em caso de inadimplência. De outro modo, as perdas podem ser significativas, e o arbitramento judicial da prestação pode resultar num desequilíbrio da balança da equivalência material.

Referências Bibliográficas

  1. BARRÍA, Cecília. É possível dolarizar a economia argentina como propõe Javier Milei? BBC News Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1e9z7n3llo. Acessado em: 10 de outubro de 2023.
  2. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União de 11/01/2002, pág. nº 1.
  3. Lei nº 14.286, de 30 de dezembro de 2021. Dispõe sobre o mercado de câmbio brasileiro, o capital brasileiro no exterior, o capital estrangeiro no País e a prestação de informações ao Banco Central do Brasil
  4. GUANDALINI, Giuliano. ‘Dramático não é a dolarização. Dramático é não termos uma moeda’. Brazil Journal. Disponível em: https://braziljournal.com/dramatico-nao-e-a-dolarizacao-dramatico-e-nao-termos-uma-moeda/. Acessado em: 10 de outubro de 2023.
  5. Ministério Público do Estado de Santa Catarina. Bancos fazem acordo com MPSC e suportarão metade do reajuste de financiamentos de veículos anteriores a 1999 indexados pelo dólar. Disponível em: https://www.mpsc.mp.br/noticias/bancos-fazem-acordo-com-mpsc-e-suportarao-metade-do-reajuste-de-financiamentos-de-veiculos-anteriores-a-1999-indexados-pelo-dolar. Acessado em: 10 de outubro de 2023.
  6. ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Ed. Almedina, 2009.
  7. SERRANO, Franklin. Dolarização na América Latina. 2003. Disponível em: https://franklinserrano.files.wordpress.com/2017/05/serrano-2003b-dolarizac3a7c3a3o.pdf. Acessado em: 10 de outubro de 2023.

Referências

[1] Sobre a realidade das operações econômicas que subjazem os contratos como instrumentos jurídicos, vale citar a lição de Enzo Roppo:

“[…] também o conceito de contrato não pode ser entendido a fundo, na sua essência íntima, se nos limitarmos a considerá-lo numa dimensão exclusivamente jurídica – como se tal constituísse uma realidade autónoma, dotada de autónoma existência nos textos legais e livros de direito. Bem pelo contrário, os conceitos jurídicos – e entre estes, em primeiro lugar, o de contrato –reflectem sempre uma realidade exterior a si próprios, uma realidade de interesses, de relações, de situações económico-sociais, relativamente aos quais cumprem, de diversas maneiras, uma função instrumental. […] As situações, as relações, os interesses que constituem a substância real de qualquer contrato podem ser resumidos na ideia de operação económica. De facto, falar de contrato significa sempre remeter – explícita ou implicitamente, directa ou mediatamente – para a ideia de operação económica. […]” (ROPPO, 2009, págs. 7 e 8)

[2]“(…) Quando não enquadradas nas exceções legais, as dívidas fixadas em moeda estrangeira deverão, no ato de quitação, ser convertidas para a moeda nacional, com base na cotação da data da contratação, e, a partir daí, atualizadas com base em índice oficial de correção monetária. (…)”

(REsp n. 1.323.219/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 27/8/2013, DJe de 26/9/2013.)

[3] A cotação oficial do dólar estadunidense em 17 de janeiro de 2014 foi de R$ 2,3595 para compra.

[4] A cotação oficial do dólar estadunidense em 1º de março de 2023 foi de R$ 5,2064 para compra.

* Claudio Ribeiro é advogado do Setor Internacional da RMSA.

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