O Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ) e o Princípio do Contraditório e Ampla Defesa
Entenda a importância para a proteção dos direitos individuais de sócios de empresas devedoras
Por Gabrielle Ukan*
Não são raros os credores que buscam por sócios de sociedades empresárias no intuito de atingir seus bens particulares para satisfazer o crédito oriundo de dívida da empresa. Assim, realizando bloqueios sem que ao menos os sócios indicados tenham tido conhecimento da manifestação e da decisão que os pretendeu incluir no polo passivo da ação judicial.
Nas relações cíveis e comerciais, o ordenamento jurídico brasileiro adotou como regra geral a chamada Teoria Maior da desconsideração da personalidade jurídica. Essa regra estabelece que, para a aplicação desse instrumento, é necessário comprovar a existência de abuso de personalidade. Esse abuso pode ser caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, conforme previsto no artigo 50 do Código Civil[1]. Essa exigência visa garantir a proteção de interesses legítimos.
A aplicação deste instituto, porém, deve respeitar princípios basilares do direito brasileiro, especialmente no que diz respeito ao Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa.
Em suma, esse princípio determina que todas as partes do processo tenham a oportunidade de se defender adequadamente. Não se permite a responsabilização de um terceiro sem antes garantir-lhe o exercício ao contraditório, direito constitucionalmente previsto.
A inobservância desse princípio pode gerar a nulidade dos atos processuais praticados posteriormente. Tanto a pessoa jurídica executada quanto os sócios e/ou administradores afetados pela desconsideração da personalidade jurídica (DPJ) podem alegar essa nulidade.
Importância do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica
Sendo assim, o Código de Processo Civil exige a instauração do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ). O objetivo é assegurar que todas as partes envolvidas sejam devidamente ouvidas antes que o juízo tome uma decisão sobre a desconsideração.
A instauração do IDPJ é essencial para a proteção do contraditório. Isso ocorre porque a desconsideração da personalidade pode ter consequências graves para sócios, administradores ou trabalhadores responsabilizados por dívidas da empresa. Em outras palavras, o IDPJ previne tanto o cerceamento de defesa (impossibilidade do exercício ao contraditório) quanto a tomada de decisões abruptas pelos juízos, garantindo uma análise cuidadosa das circunstâncias.
Esse procedimento, juntamente com o respeito ao contraditório, está claramente assegurado pelo artigo 135 do Código de Processo Civil. O artigo determina que, uma vez instaurado o IDPJ, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para se manifestar e requerer as provas que considerar cabíveis.
Desafios na Aplicação
Apesar disso, os operadores do direito frequentemente ignoram essa ordem legal na prática. Por essa razão, é importante observar e dar atenção ao Tema 1.232 do Supremo Tribunal Federal (STF). Esse tema trata da possibilidade de inclusão no polo passivo da lide, na fase de execução trabalhista, de empresa integrante de grupo econômico que não participou do processo de conhecimento:
Apesar do leading case tratar especificamente de caso da esfera trabalhista, a conclusão do Tema de Repercussão Geral nº 1232 pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro foi exatamente no sentido de que a tomada de atos contra terceiros somente pode ocorrer após garantido o contraditório seguindo a instauração do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, estabelecendo a questão como um Princípio Geral do Direito Processual Brasileiro.
Os Tribunais Brasil afora têm se posicionado exatamente nesse sentido em suas decisões. Assim, reconhecem a necessidade do regular incidente de desconsideração da personalidade jurídica em respeito ao devido processo legal e ao Princípio do Contraditório e Ampla Defesa.
Desta forma, o atendimento dos procedimentos acima descritos, concomitante a observação do Tema 1232 do STF, garante não só a proteção de credores e a manutenção da ordem jurídica como também e, principalmente, garante que as decisões sejam justas e equitativas. Isso evita o cerceamento de defesa e preserva os direitos de todos os envolvidos.
Considerações Finais
O incidente de desconsideração da personalidade jurídica é um instrumento importante e necessário. No entanto, deve-se aplicar com cuidado e respeito às garantias constitucionais. O Tema 1.232 do STF destacou a importância do contraditório e da ampla defesa nesse contexto, reafirmando que não se pode sacrificar a proteção dos direitos individuais em prol de uma resposta rápida à proteção dos credores.
À medida que o Judiciário continua a lidar com questões complexas envolvendo a desconsideração da personalidade jurídica, é crucial manter um equilíbrio. É preciso proteger os direitos dos credores, sem deixar de lado as garantias dos sócios. Somente assim será possível garantir um sistema jurídico justo e equitativo, que respeite os interesses empresariais e os direitos fundamentais dos indivíduos envolvidos.
[1] Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.